“A TEORIA DAS FORMAS DE GOVERNO”
BOBBIO, Norberto. 10.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. (179 pags.)
SUMÁRIO
I. Apresentação II. Uma discussão célebre III. Platão IV. Aristóteles V. Políbio VI. Maquiavel VII. Bodin VIII. Hobbes IX. Vico X. Montesquieu XI. Hegel XII. Marx XIII. Conclusão
I - Apresentação
Norberto Bobbio é um dos mais conceituados pensadores contemporâneos. Nascido em Turim (Itália) em 1909, estudou Direito e Filosofia, foi professor nas Universidades de Siena (1938-1940) e Pádua (1940-1948), assumindo, a partir de 1948, a cátedra de Filosofia do Direito na Universidade de Turim, na qual se aposentou em 1980.
O livro em estudo é a primeira de suas obras publicadas na íntegra no Brasil e trata-se de uma das mais importantes, juntamente com: Teoria do Ordenamento Jurídico, Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant e Dicionário de Política. Na verdade, A Teoria das Formas de Governo é um livro didático oriundo de escritos relacionados ao curso dado pelo autor na Universidade de Turim, nos anos de 1975/76, que discute a temática das formas de governo sob a ótica de diversos pensadores clássicos: Platão, Aristóteles, Políbio, Maquiavel, Bodin, Hobbes, Vico, Montesquieu, Hegel e Marx.
II – Uma discussão célebre
No primeiro capítulo, é apresentada apenas uma referência histórica feita por Heródoto (História – Livro III) sobre uma discussão entre três persas: Otanes, Megabises e Dario, onde cada um defende a forma de governo que acredita mais adequada ao seu pais, após a morte de Cambises.
Otanes sugeriu um governo democrático, argumentando que o monarca é guiado pela prepotência e pela inveja, sentimentos estes que o levarão a cometer as maiores atrocidades, sem que exista quaisquer formas de controle. Contrariamente, o governo do povo merece o mais belos dos nomes: isonomia.
Por outro lado, Megabises, embora concordando com a opinião de Otanes sobre a monarquia, aconselha a implantação de um governo oligárquico, pois, para ele, a massa popular inepta é obtusa e muito mais prepotente que o monarca, com a agravante de que suas atitudes são inconscientes. Portanto, o governo deveria ser entregue a um grupo de homens preparados, os melhores.
Finalmente, Dario aquiesce o posicionamento de Megabises sobre o governo popular, mas rebate a sua conclusão sobre a oligarquia, afirmando que dentro do próprio grupo oligárquico irão surgir facções que lutarão pela liderança do governo, levando o país, conseqüentemente, à melhor forma de governo: a monarquia.
Há também uma derivação dessa configuração, apresentada por Aristóteles e por Políbio, os quais afirmam que para cada constituição boa corresponde uma má, dependendo de quem governa, conforme quadro comparativo abaixo:
HERÓDOTO
MONARQUIA (-) ARISTOCRACIA (+) DEMOCRACIA (-)
OTANES
MONARQUIA (-) ARISTOCRACIA (-) DEMOCRACIA (+)
MEGABISES
MONARQUIA (-) ARISTOCRACIA (+) DEMOCRACIA (-)
DARIO
MONARQUIA (+) ARISTOCRACIA (-) DEMOCRACIA (-)
ARISTÓTELES
MONARQUIA (+/-) ARISTOCRACIA (+/-) DEMOCRACIA (+/-)
POLÍBIO
Monarquia (+) Tirania (-) Aristocracia (+) Oligarquia (-) Democracia (+) Oclocracia (-)
Concluindo o capítulo, o autor manifesta a sua preocupação sobre a necessidade de que a constituição, seja ela qual for, dê estabilidade ao governo, atributo que corresponde à capacidade de perdurar, resistindo aos ataques de corrupção e de degradação.
Na seqüência, Bobbio passa a descrever as idéias principais dos grandes pensadores da história, como veremos adiante, de forma resumida.
III - PLATÃO (428-347 a.C.)
A conclusão apresentada pelo autor, com base em três obras de Platão (A República, O Político e Das Leis), é que o filósofo grego considerava três formas de governo corrompidas a três ideais, ou seja, a monarquia, a aristocracia e a (boa) democracia, nesta ordem de preferência, são as formas adequadas, enquanto que a (má) democracia, a oligarquia e a tirania, são as que devem ser evitadas, sendo a tirania a pior das formas de governo e a democracia a pior das melhores e a melhor da piores.
Ainda, de acordo com a teoria platônica os conflitos de gerações são os responsáveis pelas transformações dos governos, em virtude de uma nova postura diante da satisfação de três categorias de necessidades humanas: as essenciais, as supérfluas e as ilícitas.
Quanto aos critérios adotados para a definição das formas boas e más, Platão estabeleceu o seguinte paradigma: violência ou consenso, legalidade ou ilegalidade, em que a boa forma de governo está baseada no consenso e na legalidade.
IV - ARISTÓTELES (384 – 322 a.C.)
A análise do pensamento aristotélico está baseado no livro Política, que coloca um importante conceito de constituição: A constituição é a estrutura que dá ordem à cidade, determinando o funcionamento de todos os cargos públicos e sobretudo da autoridade soberana.
A idéia de Aristóteles quanto às formas boas e más de governo são idênticas à de Platão (monarquia, aristocracia e politia (as boas) e democracia, oligarquia e tirania (as más). Diverge, porém, no que se refere aos critérios e às causas das suas transformações. Para Aristóteles, o que distingue o bom do mau governo é se o governante visa ao interesse comum (bom governo) ou se ao próprio interesse (mau governo). A degeneração de uma forma boa dará lugar a outra ruim, que por sua vez se transformará, dando lugar à seguinte virtuosa, e assim por diante.
Importante a contribuição desse filósofo para uma das forma atuais de governo, presente especialmente no ocidente, quando analisa combinações de governos, como por exemplo, da democracia com a oligarquia, ao qual denominou de politia (política), com o seguinte conceito: é um regime em que a união dos ricos e dos pobres deveria remediar a causa mais importante de tensão em todas as sociedades – a luta dos que não possuem contra os proprietários. É o regime mais propício para assegurar a “paz social”. Essa formulação foi melhor desenvolvida por Políbio, com o nome de governo misto.
V - POLÍBIO (século II a.C.)
A contribuição de Políbio veio do livro História, obra de reconhecimento incontestável. Relevante também a importância dada pelo pensador à Constituição: Deve-se considerar a constituição de um povo como sua causa primordial do êxito ou do insucesso de todas as ações.
Aqui também a as formas de governo possíveis coincidem com as teorias de Platão e de Aristóteles, embora com denominações às vezes diferentes, como ocorreu com Aristóteles, em relação a Platão. São estas as formas definidas por Políbio: monarquia, tirania, aristocracia, oligarquia, democracia e oclocracia, nesta ordem de transformação.
Os ciclos de transformação descritos por Políbio ocorrem com uma certa ordem, pela sucessão predeterminada e recorrente das diversas constituições, e exprime a preferência por constituição diferente de todas as formas simples: a constituição mista. Ocorre, assim, que a constituição boa que segue é inferior àquela que a precede; a má é pior do que a má que a precede, retornando ao ponto inicial, ao final do ciclo.
A principal tese de Políbio, no entanto, refere-se ao governo misto, em que há mecanismos de controle mútuo, denominado posteriormente pelos constitucionalistas de “equilíbrio de forças”. O principal fundamento é que o governo misto abrigaria a representação de todas as camadas da sociedade (cônsules, representando a monarquia ou o rei; o senado, representado a aristocracia; e as eleições populares, em nome do poder da multidão). Desta forma, a superação do antagonismo das classes é feita pela formação de uma forte classe média diretamente interessada na estabilidade política.
Segundo Políbio, isso não daria perenidade à constituição, pois todas elas estão sujeitas a uma lei natural de nascimento, crescimento e morte, mas lhe daria estabilidade, tendo em vista que as mudanças seriam implementadas de forma gradual e negociada, com o objetivo de se evitar impactos violentos à ordem estabelecida.
Finalmente, seguindo uma graduação de mérito, Bobbio descreve a constituição mista com pendência para a aristocracia, a exemplo da constituição romana, como a preferida de Políbio.
Esse enfoque foi novamente revigorado, cem anos depois, por Cícero, em sua obra República, tendo o filósofo alertado para a principal vantagem dessa forma de governo: a estabilidade.
VI - NICOLAU MAQUIAVEL (1513)
Com Maquiavel, é inaugurada uma visão diferente do tema, diferenças essas relativas ao enfoque dado, à análise feita a partir de um novo ponto de vista.
Das obras de Maquiavel O Príncipe e Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio (Os Discorsi), Norberto Bobbio conclui que Maquiavel vislumbra duas formas de governo: Principado (correspondendo ao reino ou monarquia) e república (que tanto pode ser uma aristocracia, quanto uma democracia). Nesse aspecto, o importante é se o governo decorre da vontade apenas uma pessoa ou de muitas, respectivamente.
Outra mudança significativa refere-se à forma como a constituição se mantém ao longo do tempo, ou seja sua estabilidade. Para Maquiavel, pouco interessa a forma como o poder foi obtido (se por meios violentos e ilegais ou não), pois a caracterização do bom ou do mau governo depende de sua duração, que por sua vez, depende de como o poder é exercido (como os recursos de poder são empregados).
Condena ainda as seis formas de governo até então vislumbradas (monarquia, tirania, aristocracia, oligarquia, democracia e oclocracia): as três primeiras porque não podem durar; as três últimas pelo princípio de corrupção que contêm.
Diferencia também o movimento cíclico das degenerações dos governos, pois considera que nenhuma república ou principado suportaria chegar à pior das constituições e retornar à melhor delas, sem que antes venha a ser dominado por outro país mais organizado.
VII - JEAN BODIN (1530-1596)
A obra De la République (1576), de Jean Bodin é considerada a obra de teoria política mais ampla e sistematizada desde a Política, de Aristóteles. O tratamento dado por Bodin contradiz todas as teorias até então existentes.
Sobre o tema em análise, inicialmente, admite apenas três formas de Estado: a monarquia, a aristocracia e a democracia. Em seguida, critica as formas de governo misto, pois considera que a soberania (o verdadeiro poder) estará sempre a cargo apenas de uma pessoa ou de um grupo, havendo, porém, delegações de competências que não se confundem com o exercício do poder.
Assim, o Estado poderá ser monárquico com governo aristocrático; ou monárquico, com governo democrático, e assim por diante, sem ser essencialmente um Estado misto, porque a divisão do poder, longe de manter a estabilidade do Estado, o levará à dissolução e à guerra civil, pelo simples fato de ser, por si mesmo, conflitante.
Discussão semelhante foi abordada, dois séculos depois, por Rousseau, no livro Contrato Social, com a diferença de que Rousseau não rejeita a categoria de governo Misto.
VIII - THOMAS HOBBES (1640) Thomas Hobbes é o maior filósofo político da Idade Moderna, até Hegel. Suas principais obras são: The Elements of Law Natural and Politic (1640); De Cive (1642-1647); e Leviathan (1651).
Assim como Bodin, Hobbes não admite duas teses existentes durante séculos: a distinção entre as formas boas e as más de governo e o governo misto.
Entretanto, se para Bodin mesmo o soberano terrestre também estava submetido a poderes ainda maiores que os dele, como: o poder divino; as leis fundamentais do Estado; e as leis que regulam as relações particulares dos governados, e ainda se admitia a existência de dois tipos de sociedade, a civil (de direito privado) e a pública (de direito público), para Hobbes, o poder soberano (se soberano) não estaria sujeito a nenhuma limitação, portanto, não há de se falar em formas boas ou más de governo, porque qualquer tipo de avaliação será fruto da paixão, e não da razão.
Quanto aos governos mistos, Hobbes defende também que qualquer divisão do poder apenas servirá para destruir o próprio Estado, e não para mantê-lo. Para Hobbes, se o governo é misto não é estável, se é estável não é misto.
IX - GIAMBATTISTA VICO (1720)
Na obra de Vico denominada Il Diritto Universale (1720-1723), retornamos à análise mais histórica das formas de governo. Dessa maneira, o historiador classifica as três formas clássicas, na seguinte ordem, diferentemente de Aristóteles Políbio e outros: aristocracia, democracia e monarquia.
A concepção da história de Vico é que, após o “estado natural” dos jusnaturalistas, o homem passou por uma fase intermediária com as formação das famílias até chegar à primeira forma de governo, a república aristocrática, seguida da república popular, que veio a dar lugar à monarquia.
Releva observar que as conclusões de Vico partem de uma análise histórica, e não de uma visão filosófica de como seria o homem, caso não se vivesse em sociedade, como visto na teoria Hobbesiana.
Mais importante ainda é a teorização sobre o ciclo de transformação das constituições, que para Vico, diferentemente de todas as outras teorias precedentes, é progressiva, ou seja, parte da pior para a melhor das formas, conforme a evolução do ser humano e a racionalização do pensamento.
X - MONTESQUIEU (1689-1755)
Quatro anos após o lançamento da Segunda edição da obra de Vico, em 1748, surge L’Espirit des Lois (O Espírito das Leis), de Montesquieu.
Montesquieu identifica três formas de governo preexistentes: o republicano, o monárquico e o despótico, sendo que esta última pode ser considerada como duas, ou seja, a república poderá dar origem a um “despotismo de todos”, e a monarquia a um “despotismo de um só”. Em seguida, afirma que os governos mencionados estão fundados em três princípios: a virtude cívica, para a república; a honra, para a monarquia; e o medo para o despotismo.
Contudo, a principal contribuição de Montesquieu é a sua célebre teorização da separação dos poderes, considerada a interpretação moderna da teoria clássica do governo misto. Moderna porque, ao contrário de Bodin e Hobbes, que não admitiam uma divisão horizontal do Poder (mais de um soberano), Montesquieu entende como mais adequado o governo no qual o poder é exercido de forma moderada, com um controle do poder pelo próprio poder, sugerindo, então, não só uma divisão do poder soberano, más também uma distribuição vertical das atribuições do governo entre três poderes: o legislativo, o executivo e o judiciário.
Com isso duas formas de governo tornaram-se admissíveis: o governo moderado e o despótico, abrangendo este último a monarquia e a república.
XI - HEGEL (1802)
Em Hegel, pensador fortemente influenciado por Montesquieu, para quem a constituição é a porta pela qual o momento abstrato do Estado penetra na vida e na realidade, encontramos a mesma formulação feita por Montesquieu: o despotismo (oriental); a república (antiga); e a monarquia (moderna).
Na verdade, Hegel não discute qual a melhor forma de governo, pois considera que isso depende estágio de desenvolvimento do povo (“espírito do povo”) e isso depende de uma evolução histórica, passando do reino patriarcal, correspondente ao despotismo; para o Estado livre, em termos particulares, que corresponde às repúblicas aristocráticas e democráticas; até chegar à monarquia, em que o rei governa uma sociedade articulada em esferas relativamente autônomas.
Contudo em várias oportunidades transparece que sua preferência pela monarquia constitucional não se deve a que ela seja, em abstrato, a melhor forma de governo, mas a forma que corresponde melhor ao “espírito do tempo” vivido.
Hegel considera que a forma por excelência do Estado moderno é a monarquia constitucional, mas reconhece que essa superioridade é relativa, pois torna-se adequada apenas a grandes Estados (para pequenos Estados considera a democracia mais apropriada), e somente a povos com desenvolvimento do sistema de sociedade civil e relativamente autônomos com respeito ao sistema estatal.
XII - KARL MARX (1843)
Para a maioria dos filósofos clássicos, o Estado representa um momento positivo na formação do homem civil. O fim do Estado é ora a justiça (Platão), ora o bem comum (Aristóteles), a felicidade dos súditos (Liebniz), a liberadade (Kant), a máxima expressão do ethos de um povo (Hegel).
Marx, ao contrário, considera o Estado como um puro e simples “instrumento de domínio”; tem uma concepção que chamaria de “técnica”, para contrapor à concepção “ética” prevalecente nos escritores que o antecederam.
O que interessa para Marx (e para Engels) é a relação real de domínio, qualquer que seja a forma institucional de que se revista e qualquer que seja o titular desse domínio. Portanto, para Marx, a melhor forma de governo é aquela que agiliza o processo de extinção do Estado, transformando a sociedade estatal em não-estatal. A essa transformação Marx dá o nome de transição ou ditadura do proletariado.
XIII - CONCLUSÃO
Como pode-se observar, a apresentação do tema abordado demonstra que a obra de Norberto Bobbio constitui trabalho merecedor de atenção por parte dos estudantes de Direito, não só pelo seu conteúdo, mas também pela maneira como está direcionada a discussão. O livro transmite a real impressão de que estamos em sala de aula, com um dos melhores professores de Filosofia do Direito.
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